23 de fevereiro de 2011

"limite? tô notra."

André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia.
Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br
link para post original: Revista Trip 196.
coluna: antivírus. 
assunto: comportamento. 
@revista_trip


Limite? Tô notra. Quer saber? Quero ter dez filhos e consumir muito. Quero TV's de 70 polegadas, casa grande

A gente se acostumou a descer a rua Augusta a 120 km/h e aprendeu que viver era acelerar um motor V-8 e passar os dias lançando fumaça num céu que era infinito. Nos disseram que o mar seria azul pra sempre, e que poderíamos nos cansar de pescar o que, e o quanto, desejássemos. E agora nos dizem que tudo isso estava errado. Dizem que a atmosfera é mais fina do que uma casca de cebola, e está ficando quente e suja, e que o mar está morrendo e virando esgoto. E eles querem que os novos-ricos – os bilhões de brasileiros, indianos, chineses e tantos outros que vêm de gerações de gente privada das mínimas coisas – se comportem, agora que podem viver a vida louca, como consumidores conscientes.

Nos disseram que deveríamos crescer e nos multiplicar, e botaram essa ordem na boca de um deus. E agora nos falam que somos demais e que, com 7 bilhões de pessoas (e subindo), o planeta não aguenta. Nos disseram também que a função da natureza era nos servir, que o cordeirinho ficava feliz em se sacrificar por nós, e que Ele criou todos os seres, das árvores às abelhas, da baleia às flores, apenas para nos servir. O destino dos rios era irrigar plantações e se transformar em energia elétrica; o das vacas, nos dar leite e queijo, antes de marchar para a mesa em forma de bife. Porque nós trazemos a divindade em nós, é nosso direito, nós fomos feitos à imagem e semelhança Dele. E agora negam tudo, querem nos provar que somos parte do todo, de uma rede em que o conjunto dos seres se relaciona num equilíbrio precário, e que nós, com nossa atitude, estamos detonando geral.

Trem do apocalipse

Você quer saber? Ninguém vai me convencer disso. Lugar de bicho é na geladeira. Eu quero ter dez filhos e consumir muito. Eu quero TVs de 70 pol em todos os recantos da minha casa, casa bacana e grande, com montes de carros na garagem. Eu estarei sempre conectado, sabendo de tudo o que rola e contando pra todo mundo, via Twitter, o tempo todo, tudo o que faço e penso e compro. Eu não penso muito. Eu quero vestir marcas de grife, as boas. Eu quero um iPad em que caibam 5 mil livros. Eu não vou ler nenhum. Eu vou jogar lixo na rua, ainda mais quando ninguém estiver olhando. Meus cachorros vão sujar as calçadas, e eu não vou me rebaixar e recolher a merda deles. Eu quero me tornar um importador de tralhas chinesas que façam milhões de pessoas felizes ao serem vendidas, bem baratinho, em 12 vezes no cartão. Eu quero viver em condomínio fechado, cercado de segurança, privacidade e lazer. E com espaço gourmet. Quero ter uma mulher mais gostosa que a do vizinho, mas vou cantar a do vizinho de qualquer jeito.

Neste verão eu não me canso de confraternizar, junto ao mar, com os milhões de brasileiros que desceram a serra comigo. O povo unido e eu vamos, juntos, beber além da conta, vamos comer muita lula à dorê e muito camarão frito. Depois vamos fazer um luau e, celebrando a nossa liberdade, vendo o sol nascer, mijar, na praia, o resultado de infinitas cervejas.

Eu quero que a minha vida seja uma festa com música tocando bem alto o tempo todo, inclusive no supermercado. Quero entupir minhas artérias de gordura e quero que se explodam as artérias do planeta. Eu acreditei em tudo o que me prometeram, então eu vou continuar a descer a rua Augusta a 120 km/h. E se, algum dia, o trem do apocalipse surgir na minha frente, e for tarde demais para brecar, eu vou, como numa montanha-russa, abrir os braços e berrar, porque eu quero bater e explodir bem forte. E você, nessa hora, vai fazer o quê?


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