RICARDO ABRAMOVAY, professor titular da FEA e do IRI/USP, pesquisador do CNPq e da Fapesp, é autor de "A Transição para uma Nova Economia", a ser lançado na Rio+20 pela ed. Planeta Sustentável.
FOLHA
O capitalismo está sob cerco. As empresas são vistas, cada vez mais, como causas de grandes problemas sociais, econômicos e ambientais. A percepção pública é que lucram à custa da comunidade. A chamada responsabilidade corporativa em nada atenuou essa situação. A legitimidade dos negócios (e, portanto, da própria atividade empresarial) caiu a níveis mais baixos que nunca antes na história.
O julgamento não vem de membros do Occupy Wall Street, da Via Campesina ou do Comandante Marcos. Está logo nas primeiras linhas do texto que dois gurus da administração empresarial contemporânea, Michael Porter e Mark Kramer, publicaram alguns meses atrás na "Harvard Business Review".
Mas não se trata de um desabafo isolado e excêntrico. O tom é cada vez mais frequente em documentos das grandes consultorias globais. Em fevereiro último, uma empresa fundada por Al Gore, a Generation Investment Management, publicou uma espécie de manifesto cujo título pode suscitar um sorriso irônico, mas é certamente sinal dos tempos: Capitalismo Sustentável.
Seus autores reivindicam nada menos que um novo paradigma: "Um quadro que procure maximizar a criação de valor econômico de longo prazo, reformando os mercados para que respondam a reais necessidades, levando em conta todos (sublinhados no original) os custos e todos os stakeholders".
Três ideias são aí importantes: em primeiro lugar, está a ruptura com o que caracterizou o sistema econômico mundial dos últimos 30 anos, que é o predomínio quase absoluto das finanças na tomada de decisões empresariais. O resultado desse predomínio é uma obsessão com os ganhos de curto prazo. Segundo muitos economistas, isso deveria resultar em maior fluidez e, sobretudo, em melhores escolhas dos investimentos, uma vez que não seriam mais as burocracias empresariais que tomariam as decisões e, sim, uma instância descentralizada, pulverizada e dotada de mecanismos automáticos de correção: o mercado.
A crise de 2007/2008 mostrou a destruição social a que essa crença mágica conduziu. Várias empresas já começam a insurgir-se contra a prática de organizar suas contas como parte do jogo especulativo das finanças.
A segunda ideia fundamental do documento da Generation Investment Management está na expressão "reais necessidades". Não se trata apenas de julgar a utilidade daquilo que se produz por sua capacidade de gerar empregos, propiciar arrecadação de impostos e estimular a inovação. Nem tampouco de identificar eficiência com atendimento genérico à demanda.
Trata-se de saber se o sistema econômico está preenchendo "reais necessidades". Definir essa expressão é difícil. Pode dar lugar à tentação autoritária. Ao mesmo tempo (e é para isso que chamam a atenção tanto Porter e Kramer como a Generation Investment Management), parte muito importante dos bens e serviços que emergem do sistema econômico não preenche "reais necessidades". A epidemia global de obesidade não pode ser desligada das práticas da indústria alimentar. Em 2010, a obesidade já atingia 35,7% dos adultos e 17% das crianças norte-americanas. Um exemplo dado pelo Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos mostra a gravidade do problema: uma pessoa de 1,75 é considerada obesa quando seu peso é superior a 92 quilos. Com mais de um terço da população norte-americana nessa condição, será que se pode dizer que a indústria alimentar responde a reais necessidades?
O julgamento não vem de membros do Occupy Wall Street, da Via Campesina ou do Comandante Marcos. Está logo nas primeiras linhas do texto que dois gurus da administração empresarial contemporânea, Michael Porter e Mark Kramer, publicaram alguns meses atrás na "Harvard Business Review".
Mas não se trata de um desabafo isolado e excêntrico. O tom é cada vez mais frequente em documentos das grandes consultorias globais. Em fevereiro último, uma empresa fundada por Al Gore, a Generation Investment Management, publicou uma espécie de manifesto cujo título pode suscitar um sorriso irônico, mas é certamente sinal dos tempos: Capitalismo Sustentável.
Seus autores reivindicam nada menos que um novo paradigma: "Um quadro que procure maximizar a criação de valor econômico de longo prazo, reformando os mercados para que respondam a reais necessidades, levando em conta todos (sublinhados no original) os custos e todos os stakeholders".
Três ideias são aí importantes: em primeiro lugar, está a ruptura com o que caracterizou o sistema econômico mundial dos últimos 30 anos, que é o predomínio quase absoluto das finanças na tomada de decisões empresariais. O resultado desse predomínio é uma obsessão com os ganhos de curto prazo. Segundo muitos economistas, isso deveria resultar em maior fluidez e, sobretudo, em melhores escolhas dos investimentos, uma vez que não seriam mais as burocracias empresariais que tomariam as decisões e, sim, uma instância descentralizada, pulverizada e dotada de mecanismos automáticos de correção: o mercado.
A crise de 2007/2008 mostrou a destruição social a que essa crença mágica conduziu. Várias empresas já começam a insurgir-se contra a prática de organizar suas contas como parte do jogo especulativo das finanças.
A segunda ideia fundamental do documento da Generation Investment Management está na expressão "reais necessidades". Não se trata apenas de julgar a utilidade daquilo que se produz por sua capacidade de gerar empregos, propiciar arrecadação de impostos e estimular a inovação. Nem tampouco de identificar eficiência com atendimento genérico à demanda.
Trata-se de saber se o sistema econômico está preenchendo "reais necessidades". Definir essa expressão é difícil. Pode dar lugar à tentação autoritária. Ao mesmo tempo (e é para isso que chamam a atenção tanto Porter e Kramer como a Generation Investment Management), parte muito importante dos bens e serviços que emergem do sistema econômico não preenche "reais necessidades". A epidemia global de obesidade não pode ser desligada das práticas da indústria alimentar. Em 2010, a obesidade já atingia 35,7% dos adultos e 17% das crianças norte-americanas. Um exemplo dado pelo Centers for Disease Control and Prevention dos Estados Unidos mostra a gravidade do problema: uma pessoa de 1,75 é considerada obesa quando seu peso é superior a 92 quilos. Com mais de um terço da população norte-americana nessa condição, será que se pode dizer que a indústria alimentar responde a reais necessidades?
Mas não é só na alimentação que se verifica a distância entre o que predomina na atividade empresarial e aquilo que a Generation Investment Management chama de reais necessidades: os engarrafamentos de trânsito e o inútil esforço de contorná-los por meio de obras cada vez mais caras e destrutivas da paisagem urbana não podem ser dissociados do que faz a indústria automobilística. Num encontro realizado em 2010, a Audi contratou um amplo grupo de consultores para discutir como se converter de indústria que produz carros em indústria voltada para atender às reais necessidades de mobilidade das pessoas. O interessante nessa discussão (e fundamental para o empreendedorismo social) é que a noção de necessidades deixa de ser um tema filosófico abstrato, um assunto de governo ou de organizações de consumidores. Terá que integrar o âmago das decisões empresariais.
A terceira ideia importante na frase da Generation Investment Management refere-se aos custos da atividade empresarial. A consultoria global Trucost calculou os danos ambientais embutidos nas atividades das 3.000 maiores corporações globais. Foram levados em conta apenas três fatores: emissões de gases de efeito estufa, uso da água e geração de lixo. Não estão aí, por exemplo, as perdas sociais derivadas dos engarrafamentos ou das doenças provocadas pela obesidade. Mesmo assim, os resultados são chocantes: US$ 2,15 trilhões.
Isso corresponde a nada menos que metade de seus lucros (o que os especialistas chamam, na sigla em inglês de Ebitda: ganhos antes dos pagamentos de juros, impostos, depreciação e amortização). O relatório da consultoria global KPMG onde se encontram essas informações mostra que estes custos ambientais estão aumentando: eles dobram a cada 14 anos. Os piores impactos ambientais são os da indústria alimentar: 224% daquilo que ganha. E é importante frisar: são custos ocultos, não se incorporam aos preços, é a sociedade como um todo que os paga sob a forma de perdas ecossistêmicas muitas vezes irreparáveis.
Criação de valor a longo prazo, produção voltada a melhorar o bem-estar das pessoas, das comunidades e de seus tecidos territoriais e capacidade de preservar e regenerar os serviços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas: o maior desafio de nosso tempo é juntar empresas, governo e sociedade civil no enfrentamento desses desafios. Até aqui, manifestações como as de Porter e Kramer, da Generation Investment Management e o diagnóstico da KPMG são francamente minoritárias no meio empresarial. Mas são visionárias e sinalizam para a emergência de uma nova economia em que ética e respeito aos limites dos ecossistemas estejam no centro das decisões.
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