JESSÉ SOUZA
Graduado em direito pela UnB, mestre em sociologia pela UnB, doutor em sociologia pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e livre docente em sociologia pela Universidade de Flensburg (Alemanha) Sociólogo, professor titular de sociologia da UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) e coordenador-geral do Centro de Pesquisa sobre Desigualdade Social da UFJF.
PARA SOCIÓLOGO, OS 30 MILHÕES QUE ASCENDERAM NA ERA LULA FORMAM UM GRUPO SOCIAL DIFERENTE, DE “BATALHADORES’
Folha – Em seu livro “Os Batalhadores Brasileiros”, o senhor questiona a afirmação de que o governo Lula alçou 30 milhões de pessoas à classe média e diz até que se trata de uma mentira. Por quê?
Jessé Souza - Não nego que tenha havido a ascensão social de 30 milhões de brasileiros nem que esse fato seja extremamente importante e digno de alegria. O que questiono é a leitura dessa classe como uma classe média. A classe média é uma das classes dominantes em sociedades como a brasileira porque é constituída pelo acesso privilegiado a um recurso escasso de extrema importância: o capital cultural. Seja sob forma de capital cultural técnico, como na “tropa de choque” do capital (advogados, engenheiros, administradores, economistas etc.), seja pelo capital cultural literário de professores, jornalistas, publicitários etc., esse tipo de conhecimento é fundamental. Tanto a remuneração quanto o prestígio social atrelados a esse tipo de trabalho são consideráveis.
E os batalhadores?
A vida deles é outra. É marcada pela ausência dos privilégios de nascimento que caracterizam as classes médias e altas. Não falo só do dinheiro transmitido por herança. Os privilégios envolvem também o recurso mais valioso das classes médias: o tempo. Os batalhadores, em sua esmagadora maioria, precisam começar a trabalhar cedo e estudam em escolas públicas de baixa qualidade. Eles compensam a falta do capital cultural e econômico com esforço pessoal, dupla jornada e aceitação de todo tipo de superexploração da mão de obra. Essa é uma condução de vida típica das classes trabalhadoras, daí nossa hipótese de trabalho desenvolvida no livro que nega e critica o conceito de “nova classe média”.
Como surgiu o nome dessa nova classe?
O termo “batalhadores” sinaliza o fato de que o que perfaz o cotidiano dessas pessoas é a necessidade de “matar um leão por dia” como forma de vida de toda uma classe social que tem que lutar diariamente contra o peso da própria origem.
Quais são os valores dessa classe batalhadora?
A principal diferença em relação aos excluídos e abandonados sociais é a constituição de uma ética articulada do trabalho duro. Os batalhadores são quase sempre vindos de famílias pobres, mas bem estruturadas, com os papéis de pais e filhos reciprocamente compreendidos, exemplos de perseverança na família e estímulo consequente para o estudo e para o trabalho. Temos nas famílias dessa classe a incorporação da tríade disciplina, autocontrole e pensamento prospectivo que sempre está pressuposta em qualquer processo de aprendizado na escola e em qualquer trabalho produtivo. Sem disciplina e autocontrole é impossível, por exemplo, concentrar-se na escola, daí que os membros da ralé diziam repetidamente que “fitavam” o quadro negro por horas sem aprender. Assim, ainda que falte a essa classe o acesso às formas mais valorizadas de capital cultural -monopólio das “verdadeiras” classes médias, não lhes falta força de vontade, perseverança e confiança no futuro, apesar de todas as dificuldades.
A religião é mais importante para os batalhadores que para a classe média tradicional?
O tema da religião é tão importante para essa classe que dedicamos toda uma parte do livro a essa temática. Mas é preciso cuidado, pois esse tema pode servir para que se construa uma nuvem de preconceitos contra essa classe. É, sem dúvida, correto que as religiões evangélicas – como, aliás, todas as religiões em alguma medida – exigem o sacrifício do intelecto, o que, efetivamente, não ajuda no exercício da tolerância nem no desenvolvimento das capacidades reflexivas dos seres humanos. Em troca, no entanto, essas religiões oferecem o que a sociedade como um todo, o Estado ou mesmo algumas das famílias menos estruturadas dessa classe jamais deram a eles: confiança em si mesmos, autoestima, esperança e força de vontade para vencer as enormes adversidades da vida sem privilégios de nascimento. Nesse sentido, tudo leva a crer que a religião seja mais importante para esses setores do que para as classes médias estabelecidas, ainda que nunca tenhamos feito nenhum estudo sistemático. E não apenas as religiões evangélicas, que são importantes especialmente nos núcleos urbanos. Também a católica, no interior do Nordeste, ainda forte, cumpre uma função fundamental de baluarte da solidariedade familiar e como fundamento de uma ética do trabalho em muitos aspectos semelhantes à do protestantismo.
A nova classe batalhadora faz surgir um novo tipo de preconceito no Brasil?
Sim, basta olhar as revistas que analisam o padrão de consumo dessa classe sob a égide da visão de mundo da classe média estabelecida. Ela aparece sempre como um tanto vulgar e sem o “bom gosto” que caracterizaria os estratos superiores.
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