Talvez o caminho não
seja consumir menos, mas de um jeito diferente. O socioambientalismo
fracassará, se sua mensagem for: “desejem menos“.
Por João Telésforo Medeiros Filho, no Brasil e Desenvolvimento
(Título original: “Do ambientalismo catastrofista à ecologia dos desejos”)
O socialismo só pode
chegar de bicicleta”, disse certa vez o socialista chileno José Antonio
Viera Gallo. A realização do socialismo exige, hoje, que rompamos com a
ideologia produtivista da sociedade industrial, simbolizada pelo
automóvel individual motorizado. Seria ambientalmente viável garantir
“carro para todos”? Isto é, faz sentido que o sonho socialista seja
promover a inclusão de todos na sociedade de consumo tal como existe
hoje? Ainda que quiséssemos isso, é provável que os ecossistemas deste
nosso planeta não suportem 7 bilhões de pessoas consumindo bens
materiais no nível, por exemplo, da classe média alta brasileira.
Construir uma sociedade
justa e que garanta bem-estar a todos, então, exige de nós muito mais
do que o desenvolvimentismo de esquerda tenta nos oferecer – isto é,
crescimento econômico acompanhado de distribuição de renda. É preciso
repensar e transformar as bases do nosso modo de vida, dos meios de
transporte e fontes energéticas em que nos baseamos, dos bens que avidamente consumimos.
Talvez o caminho não
seja consumir menos, mas de um jeito diferente; canalizar nossos desejos
de outras maneiras, para outros e novos objetos. O socioambientalismo
fracassará, se sua mensagem às pessoas for: “desejem menos“. Esse
discurso ambiental catastrofista, que exerce o papel de superego da
sociedade de consumo em massa, dificilmente poderá ser o parteiro de
modos de vida diferentes. O máximo que conseguirá é que as pessoas
passem a consumir com maior culpa – aliás, quem sabe não consumam ainda
mais, em busca dos prazeres inconscientes de transgredir um dever, ou
como mecanismo de fuga à ansiedade e depressão diante do
fim-do-mundo-que-se-avizinha e da sua culpa por ele… Ou, então, talvez
algumas delas limitem-se a mudar as suas condutas individuais,
reproduzindo o velho mecanismo descrito pelo psicanalista Contardo
Calligaris: “Além de dar sentido ao meu mundo, a culpa me oferece a
ilusão de agir de maneira eficaz: como o flagelante, posso esperar que
minha renúncia ao prazer suspenda a punição. De repente, doenças e
catástrofes talvez parem diante de minha conduta meritória. Em vez (ou
além) de procurar as condições de prevenir um terremoto ou de debelar um
câncer resistente, rezarei noite e dia e me fustigarei em penitência.
Se, de qualquer forma, o terremoto vier ou o câncer triunfar, será
porque não me açoitei o suficiente.” É como aquele pessoal que para de
comer carne e acha que, assim, está “fazendo sua parte” contra o
aquecimento global… Quanto maior o sacrifício, maior a recompensa, não
é?
Claro que precisamos
mudar padrões de consumo, e consumir menos carros (e talvez menos carne,
não entrarei nesse mérito aqui), por exemplo, é parte importante disso.
Porém, não será com pesadelos sobre o fim do mundo e discursos ascetas
contra o consumo que seduziremos amplas parcelas da sociedade (a começar
de nós mesmos) a desligarem os motores e pedalarem num rumo
sustentável. Precisamos de sonhos, imaginários e desejos afirmativos,
que não façam apologia do sacrifício individual em nome do combate ao
mal coletivo, mas sim do engajamento (inter)pessoal em novas formas de
convivência social, de relacionamento com os outros e com as coisas, que
tragam mais oportunidades para uma vida mais plena, intensa, autêntica, singular – e, nesse sentido, feliz.
Não adianta dizer às
pessoas: “o capitalismo é a felicidade, mas isso não é possível para
todos, então sejam menos felizes, controlem seus impulsos consumistas,
para ao menos sobreviverem”. É preciso diagnosticar como o capitalismo
nos isola, nos põe uns contra os outros, destrói experiências de
compartilhamento, esforça-se para homogeneizar e burocratizar tudo e
todos, submetendo-nos à sua lógica implacável – para depois vender
“diferenças” pasteurizadas e objetivadas sob a forma de mercadorias. Ou
seja, o capitalismo é a destruição das culturas indígenas e do Cerrado
nativo, no Distrito Federal, para que em seu lugar se construa um bairro
“ecológico” de alta classe, o “Setor Noroeste”; é transformar a
resistência em produto de boutique; é parasitar a alegria do jogo, do
futebol, e usar uma Copa do Mundo como pretexto para despejar milhares
de pessoas de suas casas, e bilhões de recursos públicos nos cofres de
poucas empresas privadas… Essa não corresponde exatamente à minha imagem
do que é felicidade…
Não basta, no entanto,
ser “anticapitalista”, nem anti catástrofe ambiental e humana, nem
nenhuma outra forma melancólica que se esgota no “anti”. “É preciso”,
como afirma o Manifesto da Universidade Nômade, “resistir na alegria,
algo que o poder dominador da melancolia é incapaz de roubar. Quando o
sujeito deixa de ser um mero consumidor-passivo para produzir ecologias.
(…) É preciso criar desvios para uma vida Mais vida: sobrevida,
supervida, overvida. Pausa para sentir parte do acontecimento, que é a
vida”.
O sonho de comprar um
carro não é o de ter um agregado de ligas metálicas e de borracha na sua
garagem. É o desejo de mobilidade, por um lado; e, por outro, o de
consumir um bem simbólico que agrega status, de diferenciar-se
socialmente com base na capacidade de possuir coisas. A alternativa que
precisamos construir à ideologia individualista do consumo e da
competição deve oferecer a resposta a esse desejo material de
locomover-se (assim como ao de educar-se, comunicar-se, etc), mas, mais
do que isso, deve anunciar e compartilhar a alegria do comum: a alegria
de que a minha diferença não implique inferioridade, menor diferença
(menor poder de consumo, de possuir coisas, no capitalismo) do outro,
mas potencialize ainda mais as suas diferenças; que essas diferenças se
encontrem, se vejam, se multipliquem, entrem em diálogo e em conflito no
espaço público. A alegria dos encontros, em oposição ao mundo
higienizado e homogeneizado do capitalismo, cujo símbolo mais eloquente
talvez seja, mais do que o carro, com seus vidros levantados contra a
rua, o condomínio fechado, que já leva o ensimesmamento e aversão à
diferença no próprio nome.
O que queremos é uma
vida com mais prazer, e não com menos; ou melhor, com mais prazeres,
para além da uniformidade dos shoppings centers. Prazeres
compartilhados, porque compartilhar alegria e prazer é a melhor forma de
multiplicá-los. “Happiness is only real when shared”, como disse
Christopher McCandless…
É preciso caminhar ou
pedalar, alegremente, a dez por hora, e fazer disso não um gesto
indvidual, mas de reconquista coletiva do espaço público, compartilhado,
que nos foi usurpado. Canalizar desejos para novos objetos exige de nós
que produzamos (isto é, sejamos) novos sujeitos, como de certa forma lembra
o Bruno Cava. Construir essas novas subjetividades só pode ser obra de
uma práxis transformadora, de singularidades que se constróem juntas,
coletivos que proliferam “na rua, no meio do redemoinho”…
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